Quando ganhou espaço na comunicação a atual crise em dois hectares onde vivem 170 índios (Estado, 29/10), dois dias antes se suicidara um jovem de 23 anos, pelas mesmas razões. Felizmente, a desembargadora Cecília Mello, do Tribunal Regional Federal, determinou que os guarani-caiovás permaneçam na área até que se conclua a delimitação da que lhes deve caber - e onde estão "em situação de penúria e falta de assistência", o que, segundo ela, "reflete a ausência de providências do poder público para a demarcação das terras". Dizia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nesse momento, que 1.500 guarani-caiovás já se haviam suicidado.
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Só pode levar ao espanto trazer à memória que havia 5 milhões de índios ocupando os 8,5 milhões de quilômetros quadrados em 1500, quando aqui chegaram os colonizadores - ou seja, cada um com 1,7 quilômetro quadrado, em média. E hoje os guarani-caiovás da aldeia em questão precisam ameaçar até com suicídio coletivo para manterem 170 pessoas em dois hectares, 20 mil metros quadrados, menos de 120 metros para cada um, pouco mais que a área de um lote dos projetos habitacionais de governos. Mas nem isso lhes concedem.

Talvez já tenha sido mencionado em artigo anterior pensamento do antropólogo Lévi-Strauss num de seus livros, no qual se perguntava por que os índios brasileiros, que eram milhões, não massacraram os primeiros colonizadores, que eram umas poucas centenas. Teria sido muito fácil. Mas ele mesmo respondia: não só não mataram, como os trataram como fidalgos; porque na cosmogonia do índio brasileiro está sempre presente a chegada do outro - e esse outro é o limite da liberdade de cada pessoa. Tal como pensava outro antropólogo, Pierre Clastres (A Sociedade contra o Estado): nas culturas indígenas não há delegação de poder, ninguém dá ordens; cada indivíduo é livre; mas o limite da liberdade de cada pessoa está em outra pessoa. Só que o respeito à liberdade dos colonizadores custou aos índios o massacre. E situações como as que vivem hoje.

De pouco têm adiantado relatórios de organismos internacionais, entre eles o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que destacam a importância (a começar pelo Brasil) das áreas indígenas para a conservação da biodiversidade, em perigo no mundo. Também têm sido esquecidas as lições do jurista José Afonso da Silva, que com seu parecer levou o Supremo Tribunal Federal a decidir pelo direito dos índios ianomâmis à demarcação de suas reservas, em Roraima: é um direito reconhecido desde as ordenações da coroa portuguesa, no século 17.

Mas
quem
comove o poder brasileiro?
Ainda no ano passado - talvez também já tenha sido comentado
aqui -, quando completou meio século a criação do Parque
Indígena do Xingu pelo
presidente Jânio Quadros, por proposta dos irmãos
Villas Boas,
o autor destas linhas, com apoio do ex-ministro Gilberto Gil, do
artista plástico Siron Franco, do compositor e criador Egberto
Gismonti, do ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai)
Márcio Santilli - entre muitas outras pessoas -, tentou levar à
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco) a proposta de transformar o parque em patrimônio
ambiental, histórico e cultural da humanidade. Afinal, naqueles 26
mil quilômetros quadrados, onde vivem 16 povos, está um pedaço
riquíssimo do patrimônio ambiental brasileiro - de sua flora, sua
fauna, seus recursos hídricos -, hoje cercado pelo desmatamento e
pelo plantio de grãos; um pedaço importante da
nossa História, pois a presença de etnias por ali tem mais de 2 mil
anos; um pedaço valioso do patrimônio cultural, com todas as
manifestações lá nascidas e que perduram. Mas para que a Unesco
receba um pedido como esse é imprescindível - foi-nos dito -que ele
tenha o aval de alguma autoridade brasileira. E não
conseguimos sequer uma audiência da Funai ou de outro órgão para
expor o pleito.
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Não estranha. Aprendemos mais uma vez que uma iniciativa como essa é considerada "ameaça à soberania nacional e ao uso de recursos naturais". Tal como já acontecera em 2002, quando o autor destas linhas, membro da comissão que preparava o projeto da Agenda 21 brasileira, observou, numa reunião, que faltava no texto um capítulo sobre clima e mudanças nessa área. E propunha que ele fosse escrito. Imediatamente o representante do Itamaraty na comissão se levantou e impugnou a proposta, alegando que "essa área, que envolve a soberania brasileira, é privativa das Forças Armadas e do Itamaraty". Ponto final. Já promulgada a Agenda, no início do novo governo, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) pediu que este escriba a representasse na Comissão da Agenda. A proposta do capítulo sobre clima e desenvolvimento sustentável foi reapresentada e aprovada em princípio. Mas jamais foi discutida. Morreu.
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Tampouco
estranha, assim, que os guarani-caiovás enfrentem esse calvário. Se
o Parque do Xingu não pode ter prioridade, se centenas de milhares
de índios em todo o País vivem um drama diário,
que
importância tem para o poder a sina de algumas dezenas de
guarani-caiovás perdidos em meio à soja sul-mato-grossense?

"Curumim
Chama Cunhatã que Eu Vou Contar (Todo Dia Era Dia de Índio)"
é o manifesto musical pela preservação dos Índios, da Fauna e da
Flora brasileiros composto pelo alquimista musical Jorge
Ben Jor. Uma canção
cativante, vigorosa (com uma utilização engenhosa dos teclados e da
percussão), dramática e ao mesmo tempo solar (ao invés de deprimir
ao tocar em um assunto tão grave, incentiva uma luta consciente e
intensa contra a devastação da natureza). Um grande exemplo de
canção inspirada da MPB (impregnada de influências rockeiras), que
integra de maneira perfeita uma rica melodia tribal junto à uma
letra crítica e holística, remetendo à história dos Índios
brasileiros. Visionário, atemporal e ecológico é o teor deste
lúdico chamamento musical para a conservação da natureza.

"Todo
Dia Era Dia de Índio" faz
parte do disco
"Bem-Vinda
Amizade" (1981),
também conhecido por ter um dos principais clássicos da carreira do
músico: "Santa Clara Clareou". Duas das várias etnias da
lista de "chamada" da música são as dos
Guaranis
e dos Caiovás.